O arrependimento de Deus (Gênesis 6.6)


A Bíblia afirma que Deus não erra, pois é perfeito. Mas em Gênesis 6.6 Ele se arrepende de ter feito o homem. O que significa? Será que Deus se equivocou com a criação de uma de suas criaturas?
No Antigo Testamento vemos diversas passagens dizendo que Deus se arrependeu. Em contrapartida, vemos outras afirmando firmemente que o Ele não se arrepende. O que quer dizer? Não seria uma contradição?

Vamos conhecer os conceitos das palavras nos originais que traduzem a expressão “arrepender-se” em nosso idioma, e saber também como entender certos significados da expressão de acordo com o contexto em que ela se encontra.

Os verbos hebraicos nãham e shubh

No Antigo Testamento, o verbo original traduzido por “arrepender-se” que se refere a Deus, é o hebraico nãham e significa basicamente “sentir pesar, entristecer-se”. Reflete a ideia de “estar triste”, “sentir pena”, “ter compaixão”, etc.” e pode ainda significar “mudança de atitude”, “mudança de ideia”.

Já quando se refere ao arrependimento humano o verbo hebraico muda: shubh, que basicamente significa “girar” ou “retornar”, e é aplicado ao tornar-se do pecado direcionando-se para Deus. Refere-se ao arrependimento moral, à disposição do homem ante a Deus, mudando sua atitude para com Ele.

A palavra “arrependimento” tem sido usada em nossas traduções tanto para designar ações humanas como atitudes divinas, mas como acabamos de constatar, nos originais a palavra usada para o arrependimento humano é diferente da usada para designar o “arrependimento” divino.

Apenas isso já evidencia que os escritores bíblicos não entendiam os dois tipos de arrependimentos como sendo a mesma coisa.

Resolvendo o “problema”

Quando nos depararmos com passagens bíblicas que falam do “arrependimento” de Deus (nãham), tenhamos em mente que o arrependimento divino é completamente diferente do humano (shubh). O homem se arrepende porque comete erros. Já o “arrependimento” divino significa que Deus pode mudar Sua maneira de tratar com o homem ou estar triste/compadecido por ele, mas nunca sugere uma mudança essencial em Seu caráter ou em Seus propósitos eternos.

O real sentido do “arrependimento” de Deus em cada passagem (se tristeza ou mudança de atitude) depende do contexto de cada uma. Analisemos algumas:

Gênesis 6.6:

“Então, arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe em seu coração.” (ARC).

Aqui o sentido da expressão “arrependeu-se o Senhor” é que Deus sentiu pesar, entristeceu-se pela situação do homem, como dá a entender a expressão paralela “pesou-lhe em seu coração”. A Bíblia de Estudo Defesa da Fé (CPAD), pág. 19, traz o seguinte comentário: “... Uma leitura atenta da passagem mostra que o desapontamento de Deus não era com a criação humana, mas com o pecado humano. (...).” (Grifo e abreviações minhas).

Em Gênesis 6.6, o “arrependimento” de Deus significa que Ele se entristeceu por causa do pecado dos seres humanos e porque teria que mudar Sua atitude em relação a eles, trazendo-lhes juízo, em resposta à sua postura pecaminosa.

Êxodo 32.14:

“Então, o Senhor arrependeu-se do mal que dissera que havia de fazer ao seu povo.” (ARC).

Nesta passagem, percebemos pelo contexto que o sentido do “arrependimento” divino é voltar atrás, mudar de atitude, mudar de ideia. Anteriormente Deus havia decidido castigar o Seu povo, mas agora Ele muda de idéia, por causa da súplica de Moisés, Seu servo.

E quanto às que dizem que Deus não se arrepende?

Em Números 23.19 lemos: “Deus não é homem, para que minta; nem filho do homem, para que se arrependa; porventura, diria ele e não o faria? E falaria e não o confirmaria?” – Aqui a palavra hebraica também é nãham. Há outras passagens que dizem a mesma coisa (1Sm 15.29; Sl 110.4; Jr 4.28; Ez 24.14; Os 13.14). E agora? Isso é uma contradição bíblica? Vamos entender.

A intenção do ímpio Balaque era amaldiçoar e destruir Israel. Deus, porém, havia decidido abençoar o Seu povo e ninguém poderia impedir isso pois era Seu propósito eterno. Além disso, Israel, naquela ocasião, não estava em falta para com Deus. Portanto, não havia motivos para Deus castigar ou amaldiçooar o seu povo. Por isso o Senhor não iria se arrepender (mudar de ideia).

Usamos como exemplo 1 Samuel 15.11, 29 e 35. No verso 11, o Senhor diz: “Arrependo-me de haver posto a Saul como rei; porquanto deixou de me seguir e não executou as minhas palavras (...)”. Para nossa surpresa, no verso 29 vemos Samuel dizendo: “E também aquele que é a Força de Israel não mente nem se arrepende; porquanto não é um homem, para que se arrependa.” E para uma surpresa maior, o final do v.35 diz: “(...) E o Senhor se arrependeu de que pusera Saul rei sobre Israel.” Como harmonizar estas passagens aparentemente contraditórias? Pelos contextos delas e do bíblico em geral!

Perceba que o “arrependimento” [mudança de ideia] de Deus, mencionado nos versículos 11 e 35 aconteceu em decorrência da atitude ímpia de Saul. O fato de o versículo 29, que diz que Deus não se arrepende, estar entre os dois que dizem o contrário, indica que não devemos dar uma interpretação extremamente literal às passagens que fala do “arrependimento” de Deus.

No que Deus se arrepende

Em Jeremias 18.7-10 nos é dito pelo próprio Senhor, o sentido em que Ele se arrepende:

“No momento em que eu falar contra uma nação e contra um reino, para arrancar, e para derribar, e para destruir, se a tal nação, contra qual falar, se converter da sua maldade, também eu me arrependerei do mal que pensava em fazer-lhe. E, no momento em que eu falar de uma gente e de um reino, para o edificar e para plantar, se ele fizer o mal diante dos meus olhos, não dando ouvidos à minha voz, então, me arrependerei do bem que tinha dito lhe faria.”

Quando o arrependimento é atribuído a Deus, quer seja na direção do julgamento ou da benção, refere-se à mudança de tratamento em Suas relações para com o ser humano. Para com o justo, Ele se mostra bom; para com o ímpio, Ele se mostra indomável (Sl 18.24-26). Em outras palavras, a maneira como Deus vai nos tratar dependerá da maneira como agirmos com Ele. Embora a vontade e propósitos de Deus sejam sempre os mesmos, a livre resposta dos seres humanos às instruções divinas pode levar a alterações no modo de agir de Deus no âmbito humano. (Is 38.1-5; Ez 18.24; Jn 3.10). Neste sentido Ele muda, se arrepende.

No que Deus não se arrepende

Mesmo castigando alguém por causa do pecado, Deus sempre tem em Seu coração o desejo de abençoar e salvar esse alguém, pois não tem prazer no sofrimento e na perdição do ser humano (Ez 18.31, 32; Jn 4.10, 11; 2 Pe 3.9). Alguns se perdem porque assim escolhem. Em Malaquias 3.6 Deus diz: “Porque eu, o Senhor, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos.” Esta frase foi proferida num contexto de castigo. Embora Deus estivesse castigando o Seu povo, Ele jamais o destruiria [consumiria], pois o amava (e ama). Abençoar e manter Israel é algo que faz parte do plano eterno de Deus. Por isso que em Números 23.19 Ele disse que não se arrepende. Nestes sentidos é que Ele não muda, não se arrepende.

Conclusão

Em resumo, no que Deus se arrepende (muda)? – Em sua maneira de tratar o ser humano, abençoando ou punindo, de acordo com o comportamento do mesmo. 
No que Deus não se arrepende (não muda)? – Em sua perfeita vontade (ex.: abençoar e salvar o homem), em Seus planos eternos (ex.: abençoar e manter Israel; redimir a criação) e em seu caráter (ex.: justiça, amor, misericórdia, paciência, graça etc.). 
Embora Deus mude a maneira de tratar com os homens segundo o modo que se comportam, seus atributos não mudam. Estes permanecem inalteráveis.


Fontes consultadas para a composição deste artigo:

Bíblia Apologética de Estudo (ICP);
Bíblia de Estudo Almeida (SBB);
Bíblia de Estudo Defesa da Fé (CPAD);
Dicionário Teológico (CPAD);
O Novo Dicionário da Bíblia (Edições Vida Nova).
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